segunda-feira, 1 de julho de 2013

Crónicas de amor em África - Meninos

Estamos todos sentados numa esplanada no Dande. Para quem esteja a imaginar uma esplanada europeia, é fazer delete a esse pensamento e botar na sua mente meia dúzia de cadeiras e mesas de plástico em frente a uma barraca. Para aqueles que estão a pensar em hamburgueres e sandes, é substituir tudo por um peixe tão delicioso como não têm memória. Grelhado ali à nossa frente. Acompanhada por um feijão em óleo de palma* e batata doce, mandioca e banana cozidas**. 

Os pescadores saem, de noite, em pequenas chatas e apanham o peixe e lagostas. Durante o dia, as mulheres servem as dezenas de pessoas nessas pequenas esplanadas inventadas em frente às suas próprias casas. Foi aí que fomos almoçar ontem. Depois da refeição, Picolé e a sua pele branca de neve jogava na sua nova nintendo 3DS XL, enquanto os adultos conversavam.

Subitamente, ouve-se um suspiro fundo e ele levanta-se, anunciando: eu tenho que ir ver o que se passa com aquele menino.

Do outro lado da pequena estrada de terra batida, encostado a um dos carros estacionados estava um dos meninos que ali anda no estacionamento a pedir dinheiro a quem deixa ali as viaturas. Eram uma meia-dúzia. Mas os outros estavam todos juntos na galhofa e aquele estava sozinho.

E foi. Apenas com a recomendação que olhasse para os dois lados para ver se vinham carros. O menino europeu, loiro, olhos claros e roupa bonitinha foi direito ao menino de rua, sujo, esfarrapado e descalço.

Que se passa, man?
(Foto by Iceberg)

Picolé voltou para nos dizer que não entendia como ele se chamava porque não percebia o que ele dizia, embora percebesse que era português. Dissemos-lhe que pedisse ao menino que falasse mais devagar e ele lá foi de volta.

O outro menino, rapidamente, o levou para o meio dos outros meninos. Eles a tentarem impressionar Picolé com lutas entre eles e Picolé a ensaiar uns passos estranhos contra a parede. Nós deliciados com a inocência que transforma um menino europeu e meia dúzia de meninos de rua em amigos por um bocado. Encantados por eles serem apenas isso: meninos. Sem mais nenhum acrescento. A nossa certeza, nesse momento, que é a idade que nos traz o cinismo e o preconceito. O verificarmos que dentro de nós, quer queiramos quer não, em maior ou menor proporção, carregamos todos esses pré-conceitos porque o meu primeiro pensamento, a seguir ao anúncio de Picolé, foi: Vais o tanas! A minha boca não se abriu a não ser para lhe dizer que olhasse para ver se vinham carros. O primeiro pensamento foi apenas isso; uma coisa rápida e fugaz seguida de um mental "és muita parva". Mas existiu. 

Para eles, a única coisa que os diferenciava? A estranheza de meia dúzia de meninos a olhar para a cara de Picolé porque ele tinha... Pensaram que era a pele branca? Naaaaaaa... Olhos azuis, minha gente!!! A única diferença é que ele tinha olhos azuis! 

Para Picolé, só havia mesmo uma questão que colocou uns minutos depois de ter voltado para ao pé de nós: Porque é que os meninos andam na rua sem sapatos? Porque, lá está, essa era mesmo a única diferença entre eles...***

Azuis? A sério?
(Foto by Iceberg)

*azeite-de-dendêazeite-de-dendém ou óleo de palma é um azeite popular nas culinárias brasileira e angolana e, também, no candomblé. É produzido a partir do fruto da palmeira conhecida como Dendezeiro (Elaeis guineensis) (Wikipedia)

**Mas os pratos eram Zara Home, tá?

***Falta, neste blog, um post sobre Picolé e o racismo que está para ser escrito há uns tempos. Nessa altura, talvez se entenda melhor esta coisa de, para ele, não haver diferença nenhuma. Nem sequer da cor da pele.

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